Raízes do Brasil - Fronteiras da Europa

No primeiro capítulo¹ de sua obra mais conhecida, Sérgio Buarque de Holanda defende a tese de que o Brasil é, de certa forma, uma extensão de Portugal, onde os costumes e a cultura ibérica estavam sendo implantados em um ambiente hostil, deixando inclusive uma sensação de sermos “desterrados em nossa terra” (p.35). Nós seríamos, portanto, herdeiros daquelas ideias, formas de convívio e instituições do povo português. Em decorrência disso, Buarque afirma que “todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem” (p. 35), reforçando sua posição de costumes estranhos à nova região e do Brasil como extensão ibérica. Entretanto, coloca os países ibéricos como os com “menor europeísmo”, por serem as pontes de ligação entre este continente e o “outro mundo”.

Segundo o autor, nesses países, haveria uma frouxidão na estrutura social e ausência de hierarquia organizada, resultando em uma maior cultura da personalidade. Nesse contexto, apresenta-se uma “terra onde todos são barões” e, por isso, não seria “possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida” (p. 37). Dada tal predominância de um certo individualismo, a competição individual surgiria sem a necessidade de se abolir os privilégios hereditários, que seriam desfeitos devido ao próprio contexto encontrado. É importante mencionar que Sérgio Buarque é um pensador liberal, dando sinais de sua ideologia em trechos como este.

Apresentada a tradição na qual acredita termos a nossa base, faz oposição à crença de que uma volta a esta resolveria as situações de “elementos anárquicos” que caracterizam o país. Afirma inclusive que esse conservadorismo que exalta tal tradição necessita desses elementos para poder se afirmar, sem os quais não teria força alguma, e essa seria uma das origens da falta de coesão que se apresenta em nossa vida social. Nas palavras do autor: “[…] a hierarquia que exaltam é que precisa de tal anarquia para se justificar e ganhar prestígio” (p 38), sendo que o mesmo questiona se essa fuga na tradição não seria resultado de uma incapacidade de criar soluções espontaneamente.

Com a já apresentada fácil ascensão de personalidades, defende que hierarquias nunca foram realmente importantes no Brasil pois os portugueses e espanhóis “parecem perceber a injustiça” presente nisso, posto que hierarquias fundam-se em privilégios. Então, aqui também o prestígio pessoal se sobressairia, fator no qual afirma que os países ibéricos seriam, de certa forma, pioneiros, por serem Estados de expressão moderna em uma época em que nenhum outro país europeu o era, sendo que ele entende que essa expressão é a competição individual, novamente um aspecto de seu liberalismo. Sendo que esse pioneirismo resultaria, ironicamente, em hábitos mais tradicionais. Haveria então grande e constante troca, com os indivíduos se tornando nobres ou retornando à massa da população geral.

Contudo, as relações entre esses estamentos seriam de muita proximidade, não havendo grandes separações entre elas. A alimentação era basicamente a mesma, sendo muitas vezes realizadas nos mesmos ambientes. Não bastando, em Portugal havia o amádigo, situação na qual os nobres deixavam seus filhos para que os “vilãos” educassem, em troca de privilégios, ressaltando certa tendência para um nivelamento das classes, novamente reduzindo a importância de qualquer nobreza herdada.

Tais características não apresentariam, porém, qualquer origem em uma “fatalidade biológica”, sendo antes resultado das relações que foram se estabelecendo historicamente na região. Uma das razões apresentadas para estas é a própria religião predominante, o catolicismo. A qual atrapalharia o desenvolvimento tanto de teorias negadoras do livre-arbítrio, quanto o desenvolvimento da organização espontânea em associações, sendo a última uma característica típica de povos protestantes. Para Buarque, “as doutrinas que apregoam o livre-arbítrio e a responsabilidade pessoal são tudo, menos favorecedoras da associação entre os homens” (p. 43).

De forma irônica, se pensado do lado da exaltação dos feitos individuais, na Península Ibérica e no Brasil há uma repulsa ao trabalho, que seria visto como uma submissão a um objeto exterior, ao qual seria visada a perfeição. Assim sendo, o “que entre elas predomina é a visão antiga de que o ócio importa mais que o negócio e de que a atividade produtora é, em si, menos valiosa que a contemplação e o amor” (p.44). Ou seja, há uma exaltação da forma de vida de “grande senhor”, que delega as funções e colhe os resultados, forma de vida que também se adequaria à baixa capacidade de organização social presente.

A virtude suprema do português seria a obediência, novamente em decorrência da exaltação da personalidade, uma das tradições que nos conectaria com eles. Para finalizar o capítulo, o autor nos deixa a questão da solidariedade, a qual somente existiria nos contextos de vinculação de sentimentos e círculos particulares, já dando os primeiros indícios de sua teoria do “homem cordial” que terá um capítulo específico; do princípio unificador da sociedade, que partiria sempre do governo, sendo aplicado de cima pra baixo, ponto que também desenvolverá melhor nos capítulos seguintes.

No fim, pode-se dizer que o principal objetivo do capítulo, como já nos indica o título, é a defesa da tese do Brasil como “Fronteira da Europa”, ponto que precisa de maiores discussões, já que apresenta diversas diferenças importantes como quanto à escravidão, que tinha grande presença no Brasil mas não em Portugal, e, consequentemente, à economia. Sua intenção fica clara ao terminar o capítulo afirmando que “podemos dizer que de lá nos veio a forma atual de nossa cultura; o resto foi matéria que se sujeitou mal ou bem a essa forma” (p. 46).

¹ HOLANDA, Sérgio Buarque de. Fronteiras da Europa. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 27. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. Cap. 7. p. 33-46.